3.8.09

No teu deserto

Hoje já ninguém vai ao nosso deserto, Cláudia. Os fundamentalistas islâmicos, como os de Laghouat, tornaram-se sanguinários e incontroláveis e os próprios tuaregues revoltaram-se contra o poder de Argel.
Mas a razão principal nem é essa. A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo "nada", eles riscam mentalmente essa viagem dos seus projectos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. As coisas mudaram, Cláudia! Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, "leves", disponiveis, sensiveis e interessantes. E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão.
Eu próprio não creio que lá volte mais. A menos que tu descesses das estrelas e quisesses vir comigo outra vez. Que pudéssemos ambos apagar todo o mal, todos os danos e todos os enganos, todos os anos perdidos que ficaram para trás, desde essa manhã límpida nas águas de Gibraltar.
Mas eu sei que não há regresso: eu mesmo to disse.
Miguel Sousa Tavares

3 comentários:

  1. vais vais!

    comprei o livro também xD

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  2. Belo excerto! Com a musiquinha de fundo até tem mais impacto.
    Gostei d ler! Ele tem toda a razao no que diz. O Mundo foge da solidão, do vazio, do escuro e do silencio. As pessoas de hoje proferem palavras mal sentem o silencio dar aviso da sua chegada. Estas pessoas de hoje, já não sabem partilhar o doce barulho do silencio, já não nos ensinam isso.
    É bem verdade que para esse ser partilhado há que ser perante pessoas em quem muito confiamosq pois é dificil estarmos em silencio sem considerar o mesmo tão constrangedor; sem pensar que algo deve ser dito pois é nosso "dever" (pensamos nós erradamnt) quebra-lo. Em vez disso deveriamos apreciá-lo como uma dádiva. Pois é no silencio que as palavras mais bonitas são proferidas, aquelas que nem a boca as sabe dizer.

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