25.8.09

A Casa Verde

Já era tarde, muito tarde. Já todos dormiam na casa verde excepto ele, a rua estava deserta e o vento fresco cortava o ofegante silêncio, como um relâmpago que ribomba e desaparece, na vácua escuridão. Muito lentamente, ele arrumava as últimas roupas e apetrechos na pequena mala, ansiando que o dia seguinte chegasse, que o sol finalmente, como por feitiço, nascesse, embora soubesse que a aventura decorreria muito antes da madrugada. Deitou-se na cama, repousou os olhos e quando voltou a abri-los, a aventura tinha começado.
A viagem foi indescritível, dias escaldantes e noites abafadas, lágrimas de riso, lágrimas de choro, olhos cansados de tanto e de tão pouco dormirem, peles brancas e peles queimadas, praias desertas e cidades atafulhadas, águas quentes e verdes, palácios surreais e mercados medievais, cheiros novos e bebidas exóticas, intermináveis horas de aeroportos e escalas, muita asneirada e parvoíce, assaltos a carros e lojas, “alcool drugs and rock and roll”, novas danças, novos amigos, novas línguas, novos conhecimentos, a new way of living. Aqueles escassos dias continham uma estrondosa lição de vida e o último dia chegou, tão rápido como o vento que ribombava na varanda, dias atrás.
A casa verde voltara a ter luz e aquele encanto especial que só a habitual confusão lhe dava, as janelas estavam outra vez abertas espalhando calor pelo perfumado jardim. E ele voltara à rotina, à deliciosa cama e ao seu quarto vanguardista, voltou a falar com as pessoas que mais falta lhe faziam. A acordar cedo, a ir comprar o jornal, que mais tarde entregava ao velho vizinho, em troca de um cigarro. Sentava-se então, à noite, no pequeno recanto da varanda, agora poeirento, e fumava-o, sem pressas, sem preocupações, tinha a pele queimada e os olhos mais claros, sentia-se renovado, recarregado de energia, de calma e paciência. Quando acabou o demorado cigarro foi-se deitar, e passou a mão pela parede verde da casa, nunca ninguém soube, nem sequer chegaram a desconfiar, mas aquela pequena carícia foi o maior sinal de agradecimento que ele alguma vez prestara à casa que tanto ama, e que tanta falta lhe faz, quando longe se encontra.


És, e serás sempre, um santuário inacabado.
Efgarestonn!

9.8.09

Strange thing called you

Sentado na sala, desfolho um livro a escassos centímetros dos olhos, desatentos e preocupados, fugindo constantemente para o ecrã do telemóvel, para aquele instrumento tão estranhamente familiar, estranho porque embora tenha sempre sido acompanhado por um, nunca me adaptei aquele pequeno ser electrónico. Devo ser anormal, tu bem o dizes! A verdade é que nunca me adaptei a este fiel amigo que sempre me acompanhou e ao qual sempre me socorri nas alturas de perigo iminente. Sempre dei pouca importância aos que realmente se preocupam comigo, apoiando-me naqueles que acabam sempre por me deixar sozinho, que só me ligam quando precisam de ajuda para alguma coisa ou porque tiveram um ataque de nostalgia. Sim, deve ser por isso que me afeiçoei tanto a ti, a essa estranha personalidade que tanto me atrai, porque mais cedo ou mais tarde deixar-me-ás sozinho, sem um aviso, sem um telefonema, sem uma mensagem, como a que espero ansiosamente receber, e que nunca mais chega, será que se perdeu? Ou simplesmente não chegou a ser enviada?
Continuo desfolhando o pequeno livro, com uma velocidade superior à prevista pelos meus olhos, que continuam impregnados no pequeno ecrã escuro, esperando notícias tuas. Noticias de um vulto que me assombra a mente e fala comigo quando mais preciso, chego mesmo a pensar se existes na realidade ou se o meu telemóvel ganhou vida própria?! O livro já não tinha mais páginas para desfolhar e, no entanto, ainda nada sabia de ti, recomecei a desfolha-lho novamente, de uma maneira mais lenta e nervosa. Não iria ser o primeiro a quebrar o gelo. Não! Estava fora de questão! Não mereces isso, pelo menos ainda!
Finalmente ele vibra e dirijo-me com fervor ao meu fiel amigo, que novamente não me deixou ficar mal. Eras tu, com um simples “hey”, uma palavra que nem comprimento tem para ser designada como tal, mas não me afligi, pelo contrário! Aquele hey era diferente de todos os outros até agora, aquela simples junção de três simples letras vinha unida com um longo significado por trás, vinha com o peso de quem deixou o orgulho de parte e isso, para mim, contava por muitas das nossas conversas intermináveis.
És a pessoa mais estranha que conheço, atrevo-me mesmo a dizer que és um pouco radical, no entanto, somos pessoas demasiado diferentes para te julgar como tal, até porque nunca te olhei com os meus próprios olhos nem te toquei com as minhas próprias mãos, nem sequer tive a oportunidade de te beijar e acariciar-te os lábios como eu tanto gosto, e tu não!
Sei que estavas à espera que aqui deixasse vestígios, pequenas pistas do que poderás eventualmente significar para mim, mas não, não o farei, porque sei que, se não o fizer, serás a pessoa mais irritada do mundo, e eu sou assim, a teus olhos, irritante.


E sabes que mais, até gosto de o ser, quebro a (nossa) monotonia.

6.8.09

Overdose

"There are some days when I think I'm going to die from an overdose of satisfaction"
Salvador Dali
Today is one of those days!

3.8.09

No teu deserto

Hoje já ninguém vai ao nosso deserto, Cláudia. Os fundamentalistas islâmicos, como os de Laghouat, tornaram-se sanguinários e incontroláveis e os próprios tuaregues revoltaram-se contra o poder de Argel.
Mas a razão principal nem é essa. A razão principal é que já não há muita gente que tenha tempo a perder com o deserto. Não sabem para que serve e, quando me perguntam o que há lá e eu respondo "nada", eles riscam mentalmente essa viagem dos seus projectos. Viajam antes em massa para onde toda a gente vai e todos se encontram. As coisas mudaram, Cláudia! Todos têm terror do silêncio e da solidão e vivem a bombardear-se de telefonemas, mensagens escritas, mails e contactos no Facebook e nas redes sociais da Net, onde se oferecem como amigos a quem nunca viram na vida. Em vez do silêncio, falam sem cessar; em vez de se encontrarem, contactam-se, para não perder tempo; em vez de se descobrirem, expõem-se logo por inteiro: fotografias deles dos filhos, das férias na neve e das festas de amigos em casa, a biografia das suas vidas, com amores antigos e actuais. E todos são bonitos, jovens, divertidos, "leves", disponiveis, sensiveis e interessantes. E por isso é que vivem esta estranha vida: porque, muito embora julguem poder ter o mundo aos pés, não aguentam nem um dia de solidão. Eis porque já não há ninguém para atravessar o deserto. Ninguém capaz de enfrentar toda aquela solidão.
Eu próprio não creio que lá volte mais. A menos que tu descesses das estrelas e quisesses vir comigo outra vez. Que pudéssemos ambos apagar todo o mal, todos os danos e todos os enganos, todos os anos perdidos que ficaram para trás, desde essa manhã límpida nas águas de Gibraltar.
Mas eu sei que não há regresso: eu mesmo to disse.
Miguel Sousa Tavares