30.7.09

Janelar


A palavra janelar é daquelas que poucos conhecem e raros utilizam, mas significa algo que muitos praticam: passar a vida à janela.
Eu confesso ser um de tantos janeleiros frustrados, a quem a impetuosa corrida das horas impede fruir tão vagaroso passatempo. Talvez por isso sinto a janela como coisa aliciante, ora remanso ora agitação, copiosa bica de beber surpresas.
Através dela chegam até nós a alegria e o conforto da luz, mas também acontece tocar-nos o cinzento triste de um dia de frio. Tanto conseguimos encará-la ao bulício como com ela nos encerramos no silêncio. Aberta pode combater o egoísmo, fechada consegue exacerbá-lo. Tem a magia de ser ponte para o mundo exterior ou transformar-se em muralha do nosso íntimo mundo.
A janela é, em suma, o fascínio do exercício de contradições que se completam, mas que não se deixam usar ao mesmo tempo.
Quinzenalmente é-me proporcionado assomar a este caixilho do canto da página, janela com vista para as realidades e para os sonhos. Hoje, no relance escrito, volto-me para o lado real.
De repente, desta minha janela descortino outra, fechada, que me parece estranha. Cesso a deambulação e ali me fixo. Por detrás dos vidros, uma senhora idosa, olhos cerrados, como quem dorme um sono tranquilo. Sinto que já está assim há dias, imóvel à janela. Descanso demasiado longo, mesmo para uma vida longa de cansaços. E de facto não dorme esta velha senhora, está morta! Morrer assim, encostada à janela, onde foi consumindo as horas seguidas de dias sem sentido.
Como companhia só a solidão. Como estimulo apenas as imagens que entravam naquela janela, cada vez mais frouxas no olhar cada vez mais ténue, até que se extinguiu… Cá fora a vida continua, impávida, a pulsar, sem se dar conta da morte na janela.
E assim foi, nesta busca leve, neste rápido relance, que descobri um novo significado da palavra janelar: esperar a morte à janela.


Jorge Castilho


26.7.09

Lisboa


A capital é a imagem de um país, uma sobreposição de tempos e velocidades, um tempo lento, analógico, a cheirar a ginja e a caracóis, sobrevivendo aos grandes debates e planos para a insaciável nação. É um tempo tenaz que se perpetua nos edifícios, nas calçadas medievais, nos trilhos de eléctricos, nas praças simétricas, nas fiéis gaivotas… Cidade que exalta o típico, o popular, o antigo, mas também a novidade e a tecnologia, celebrando a arquitectura e os engenhos pioneiros e universais.
E o rio, o sempre presente rio, imenso e irreal na sua majestade, simbolicamente definindo a amplitude do destino português.
Lisboa, velha cidade, erguida frente ao Tejo, ancorada numa colina, mais tarde multiplicada por sete. Destino marcado pela colonização romana e árabe, e pela brandura de um rio vocacionado para levar e trazer gentes, cujas margens um vento ameno fecunda a típica felicidade e azáfama da vida citadina.


Serás sempre a terceira, prometo@

22.7.09

Danger: Freedom

Passaram-se horas, talvez dias, não sei bem, sou apenas corpo, massa, objecto, a alma ficou para trás a partir do momento em que forçou o acelerador e fomos sugados para outra dimensão. De repente, estávamos ali, estagnados, e a paisagem fugia de nós a uma velocidade exorbitante, as árvores tornaram-se simples postes, os carros corriam para trás e as pessoas eram meras sombras que escoriavam a cidade branca.
Não senti qualquer receio, nenhum arrepio me percorreu a espinha e o suor provocado pelo calor sufocante voava pelo vento a fora. Não sei a quanto íamos, confiava nela a cento e um porcento e como tal distraia-me ao ver a tão familiar paisagem tornar-se abstracta á medida que descíamos a avenida em direcção ao rio, voávamos tão rápido que os pensamentos de medo e o instinto de sobrevivência não nos acompanhavam e, como tal, não senti qualquer remorso pela loucura que cometia, embora os meus olhos me mostrassem que a cada segundo que passava, o perigo que corria aumentava e que voávamos cada vez mais depressa, a mente não parecia compreender tal linguagem, e eu não me preocupei em traduzi-la.
As duas grossas rodas já mal tocavam no asfalto ardente, sentia-me totalmente livre, mais do que outrora sentira, uma estranha sensação, aquele formigueiro proveniente das entranhas mais profundas do meu leve corpo subiu até à garganta seca, era mais emocionante do que qualquer revolução, mais emocionante que uma guerra pela independência, mais tentador que uma maçã sumarenta e carnuda, mais reconfortante que um divã forrado de veludo escarlate. Era a verdadeira acepção da palavra liberdade, voar sem fazer esforço, um grito no vácuo, uma leveza igualada à queda de uma folha de plátano que alcança o chão com uma graciosidade e reconforto únicos, era eu, sentado naquele banco de camurça escura, agarrado ao desconhecido, sem pensamentos, sem palavras, apenas sensações, aquela que muitos procuram, poucos a encontram e raros a alcançam, descobri a cura para a pressão citadina, para a preocupação constante e para a vida desenfreada, o perigo da liberdade!

21.7.09

Black Button

Passeava lentamente pela avenida, amuado, sozinho. Estava um final de tarde ventoso mas quente, gastava a sola dos sapatos enquanto vagueava pelo parque fresco, as folhas iam-se soltando dos plátanos à medida que o vento as despia com gentileza e subtilidade. Sentei-me no banco velho e partido, onde outrora gerações de Pinto Lobato se haviam sentado.
Observava, com os olhos húmidos, a casa onde iria morar, naquela cidade tão grande, tão movimentada, tão cheia, tão barulhenta. Além disso, na casa antiga via o mar desde a Serra até à Ponte, ali via apenas o jardim arranjado do Campo Grande, pessoas bem vestidas a passearem os pedigrees e carros de vidros fumados a passarem violentamente pela avenida fora. Não queria isso, queria o mar, queria o pequeno prado perto do prédio onde conseguia sempre, após um choro muito bem encenado, dar de comer às vacas malhadas e aos cavalos selvagens, desejava voltar a sair pela porta e descer pela pequena rua arborizada até ao café onde todos me conheciam, comprar um chupa estalitos por 100 escudos e voltar para casa a saltitar, enquanto sentia a língua em fogo-de-artifício constante. Aqui, ao sair da porta, deparava-me com 50 metros de alcatrão onde uma maratona interminável de carros passava a toda a hora e, em segundo plano daquele cenário tristonho e monótono, um parque enorme com aspecto selvagem e hostil, o parque onde estava sentado, no banco onde todos os do meu sangue haviam sentado, em dias frescos e cheirosos, em dias escaldantes e ventosos, em dias abafados e chuvosos.
A verdade é que a casa era um palácio de um só andar, uma réplica barata de Versalhes, decorado ao estilo dos anos 50, onde parou no tempo, sendo trocado por umas águas furtadas na Boulevard de Coucelle, 5ºD, Paris. Achava piada aos grandes candeeiros de cristal, aos papeis de parede decorados com quadros de dimensões diversas, aos cadeirões Luís XIV, aos moveis de pau-brasil e, sem duvida, aos pequenos botões pretos juntos das camas, onde chamava a empregada da cozinha. Mas, mesmo assim, continuava a sentir falta do cheiro a maresia sempre que a maré mudava e da terra molhada sempre que caia um aguaceiro torrencial.
Baixei a cabeça e deixei que os olhos libertassem a água que desfocava a imagem que não queria conhecer, fiquei assim durante bastante tempo, a libertar toda a nostalgia patente em mim, naquele banco de jardim, onde já tantos como eu haviam chorado. Oiço um supiro e uma mão quente a limpa-me as lágrimas da cara rosada. Nem sequer abri os olhos, aquela mão era-me demasiado familiar, pertencia a quem eu mais amava, a um Pinto Lobato. Sabia que as feições da sua cara apresentavam um tom demasiado preocupado, odiava ver-me triste, independentemente da situação, fazia das tripas coração para me tornar no filho mais realizado e mimado do Mundo, e talvez por isso eu nunca tivesse mostrado o meu desagrado em ir morar para o palácio, porque para ele aquilo era mais do que um pequeno palácio, era a sua infância, parte da sua vida, parte da sua felicidade!
Abri os olhos e as duas últimas gotas escorreram pela pele, ressequida de tanta lágrima, olhei para ele e pedi-lhe desculpa. Ele sorriu e deu-me a mão, empurrando-me com suavidade para dentro do carro, seguíamos para a nova casa, uma outra nova casa, no local onde sempre vivera, onde sempre sonhara!

Hoje, 12 anos mais tarde, volto à casa, dias antes de ser entregue a novos donos, a novas gentes com novas tradições. Abro a porta e deparo-me com o pequeno hall revestido a espelho, reflectindo o chão de mármore branco que se prolongava até à sala de fumo, do outro lado da casa. Rumo em direcção ao corredor dos quartos, e paro na última porta, respiro fundo e encosto uma mão na porta, empurrando-a lentamente. O quarto estava exactamente como o deixara, a cama de madeira escura no meio do quarto, com cortinas transparentes a ladeá-lo, a mobília intacta, presa no tempo e queimada pelo sol que entrava pelas grandes janelas da varanda. Percorro com precaução o chão vazio do quarto e sento-me na cama, perto da mesa-de-cabeceira, onde o candeeiro do cão de roupão turco segurava a pistola, tinha um carinho especial por aquele ser assustador. Passei-lhe a mão ao de leve e, enquanto lhe retirava o escasso pó que tinha, descobri o pequeno botão preto com que tanto brincava, um calafrio percorreu-me o corpo e lembrei-me do quanto o venerava. A minha mão avançava para o botão, como querendo revivê-lo. Ao pressioná-lo oiço uma campainha ao fundo, na cozinha, a ribombar. Sorri para mim mesmo, e para o cãozinho da mesa-de-cabeceira, sabia que ele já tinha assistido aquilo vezes sem conta, era engraçado como agora sentia saudades daquilo, daquele pequeno palácio onde nunca fora rei, porque nunca o desejara. Desliguei o cão da ficha, levantei-o com cautela da mesa, receando de que se partisse em bocadinhos, e levei-o debaixo do braço até uma nova casa, até à minha verdadeira casa, no local onde sempre vivera, onde sempre sonhara!