Passeava lentamente pela avenida, amuado, sozinho. Estava um final de tarde ventoso mas quente, gastava a sola dos sapatos enquanto vagueava pelo parque fresco, as folhas iam-se soltando dos plátanos à medida que o vento as despia com gentileza e subtilidade. Sentei-me no banco velho e partido, onde outrora gerações de Pinto Lobato se haviam sentado.
Observava, com os olhos húmidos, a casa onde iria morar, naquela cidade tão grande, tão movimentada, tão cheia, tão barulhenta. Além disso, na casa antiga via o mar desde a Serra até à Ponte, ali via apenas o jardim arranjado do Campo Grande, pessoas bem vestidas a passearem os pedigrees e carros de vidros fumados a passarem violentamente pela avenida fora. Não queria isso, queria o mar, queria o pequeno prado perto do prédio onde conseguia sempre, após um choro muito bem encenado, dar de comer às vacas malhadas e aos cavalos selvagens, desejava voltar a sair pela porta e descer pela pequena rua arborizada até ao café onde todos me conheciam, comprar um chupa estalitos por 100 escudos e voltar para casa a saltitar, enquanto sentia a língua em fogo-de-artifício constante. Aqui, ao sair da porta, deparava-me com 50 metros de alcatrão onde uma maratona interminável de carros passava a toda a hora e, em segundo plano daquele cenário tristonho e monótono, um parque enorme com aspecto selvagem e hostil, o parque onde estava sentado, no banco onde todos os do meu sangue haviam sentado, em dias frescos e cheirosos, em dias escaldantes e ventosos, em dias abafados e chuvosos.
A verdade é que a casa era um palácio de um só andar, uma réplica barata de Versalhes, decorado ao estilo dos anos 50, onde parou no tempo, sendo trocado por umas águas furtadas na Boulevard de Coucelle, 5ºD, Paris. Achava piada aos grandes candeeiros de cristal, aos papeis de parede decorados com quadros de dimensões diversas, aos cadeirões Luís XIV, aos moveis de pau-brasil e, sem duvida, aos pequenos botões pretos juntos das camas, onde chamava a empregada da cozinha. Mas, mesmo assim, continuava a sentir falta do cheiro a maresia sempre que a maré mudava e da terra molhada sempre que caia um aguaceiro torrencial.
Baixei a cabeça e deixei que os olhos libertassem a água que desfocava a imagem que não queria conhecer, fiquei assim durante bastante tempo, a libertar toda a nostalgia patente em mim, naquele banco de jardim, onde já tantos como eu haviam chorado. Oiço um supiro e uma mão quente a limpa-me as lágrimas da cara rosada. Nem sequer abri os olhos, aquela mão era-me demasiado familiar, pertencia a quem eu mais amava, a um Pinto Lobato. Sabia que as feições da sua cara apresentavam um tom demasiado preocupado, odiava ver-me triste, independentemente da situação, fazia das tripas coração para me tornar no filho mais realizado e mimado do Mundo, e talvez por isso eu nunca tivesse mostrado o meu desagrado em ir morar para o palácio, porque para ele aquilo era mais do que um pequeno palácio, era a sua infância, parte da sua vida, parte da sua felicidade!
Abri os olhos e as duas últimas gotas escorreram pela pele, ressequida de tanta lágrima, olhei para ele e pedi-lhe desculpa. Ele sorriu e deu-me a mão, empurrando-me com suavidade para dentro do carro, seguíamos para a nova casa, uma outra nova casa, no local onde sempre vivera, onde sempre sonhara!
Hoje, 12 anos mais tarde, volto à casa, dias antes de ser entregue a novos donos, a novas gentes com novas tradições. Abro a porta e deparo-me com o pequeno hall revestido a espelho, reflectindo o chão de mármore branco que se prolongava até à sala de fumo, do outro lado da casa. Rumo em direcção ao corredor dos quartos, e paro na última porta, respiro fundo e encosto uma mão na porta, empurrando-a lentamente. O quarto estava exactamente como o deixara, a cama de madeira escura no meio do quarto, com cortinas transparentes a ladeá-lo, a mobília intacta, presa no tempo e queimada pelo sol que entrava pelas grandes janelas da varanda. Percorro com precaução o chão vazio do quarto e sento-me na cama, perto da mesa-de-cabeceira, onde o candeeiro do cão de roupão turco segurava a pistola, tinha um carinho especial por aquele ser assustador. Passei-lhe a mão ao de leve e, enquanto lhe retirava o escasso pó que tinha, descobri o pequeno botão preto com que tanto brincava, um calafrio percorreu-me o corpo e lembrei-me do quanto o venerava. A minha mão avançava para o botão, como querendo revivê-lo. Ao pressioná-lo oiço uma campainha ao fundo, na cozinha, a ribombar. Sorri para mim mesmo, e para o cãozinho da mesa-de-cabeceira, sabia que ele já tinha assistido aquilo vezes sem conta, era engraçado como agora sentia saudades daquilo, daquele pequeno palácio onde nunca fora rei, porque nunca o desejara. Desliguei o cão da ficha, levantei-o com cautela da mesa, receando de que se partisse em bocadinhos, e levei-o debaixo do braço até uma nova casa, até à minha verdadeira casa, no local onde sempre vivera, onde sempre sonhara!